Casa Yara DW

Fragmentos de Presença

Sobre a exposição

Somos impelidos a reimaginar ou criar mundos a partir dessa unidade arquitetural: a casa. Este lugar onde as coisas dão o testemunho de uma alma que habita, de forma intermitente, essa constituição de abrigo. Para Emanuele Coccia, a casa é uma experiência moral determinante para o desenvolvimento do amor e da felicidade nos indivíduos. Ela seria um estranho círculo no qual reunimos as coisas e as pessoas indispensáveis para o nosso bem-estar. Um campo atrelado às emoções, que encontra na casa a materialização de microdecisões no sentido espacial — escolhas e composições — e das subjetividades que conferem identidade aos indivíduos [1].

Ao ser convidada para elaborar esta curadoria na Casa Yara DW, um espaço de encontros que acolhe exposições de arte, mas também cursos, ateliês e elaborações de projetos artísticos, não pude deixar de recorrer a alguns pontos levantados por Coccia em seu livro mais recente, Filosofia da Casa. No contexto apresentado pelo filósofo, a casa se manifesta a partir de uma visão antropocêntrica e urbanizada. Porém, ao se revelarem em conjunto aqui na exposição Fragmentos de Presença, as obras abrem trilhas de indagações sobre um meio de convivência, uma formação de vila e aldeia, e nos permitem tanto questionar quanto compartilhar — consciente e inconscientemente — essas estruturas de proteção com o meio ambiente e com outras formas de vida, sejam elas reais ou imaginadas.

A mostra se estabelece a partir de diálogos que permitem a remodelagem de universos por meio do subjetivo pertencimento à estrutura que chamamos de lar. Os trabalhos se conjugam em debates que revitalizam e ampliam pensamentos explorados por Emanuele Coccia, Henry Thoreau e Virginia Woolf. Enquanto cada um desses escritores, a seu modo e contexto, debatem a relação e a convivência dos indivíduos com a casa, as obras apresentadas fluem em convergência com o que propõem Donna Haraway e Vinciane Despret, eclodindo uma visão descentralizada do humano para essa unidade arquitetônica que aparenta estabilidade, mas se mostra como um território fluido e mutável, cuja eficiência depende do equilíbrio entre todos os sons emitidos no planeta.

Nas instalações de Cláudia Lara, Mandú, Vicente Baltar e Rosana Naday, a casa pode ser vista como um receptáculo de transformações, um lugar onde a matéria se transfigura e se reestrutura, ecoando as metamorfoses do corpo e da natureza. Cláudia Lara reúne em seus trabalhos uma coleção elaborada por partes de tecidos e linhas de costura. Ela cria ninhos e remonta casulos a partir de tramas que escolhe, compondo uma espécie de “museu pessoal”[1]. Em Ninho Paisagem, acolhe não apenas tudo aquilo que é, mas a potência de tudo que pode ser. É dessa trama da vida que Mandú e Vicente Baltar edificam uma ode à efemeridade em Aqui, nesta terra, pisamos em ovos ou em cemitérios. O ovo, a concha e a terra fértil materializam a simbologia da renovação. Tudo o que é orgânico nasce, vive, morre e se decompõe, transformando-se em nutrientes para outras vidas surgirem. Nada se perde, o tutano da vida[5] segue o curso da mutação. Thoreau escreveu: “toda mudança é um milagre que se contempla, mas é um milagre que está acontecendo a todo instante”[2]. Da fundição do bronze surgem as figuras moldadas por Rosana Naday, cada peça é um ser complexo que existe em compartilhamento de espaço com outras entidades. Essas figuras amórficas habitam um universo orgânico e se apresentam em sinergia coreografada, flutuando em equilíbrio gravitacional e compartilhando a mesma casa. 

Os trabalhos de Juliana Brandão, Carolina Colicho e Alice Aroeira derivam da pluralidade de sentidos da palavra casa e se apresentam como um nome composto. São corpos-casa, objetos-casulo, moradas-receptáculo que entrelaçam o artesanal e o natural, compondo uma narrativa silenciosa que extrapola os limites entre o que é o dentro e o fora.  Algumas espécies evoluíram para corpos que encontram casa em exoesqueletos. No caso de alguns animais marinhos, como os moluscos, as conchas costumam ser utilizadas como defesa contra predadores e também para manter o equilíbrio entre as trocas do corpo interior com o ambiente externo. A artista Juliana Brandão usa o elemento da concha como metáfora para zelar por aquilo que é valioso. Assim como as conchas guardam os sussurros do mar, a instalação O mar me disse exige que o espectador chegue perto para ouvir os segredos guardados no som. A partir da cerâmica, Carolina Colicho deixa que as formas se manifestem através do barro e do fogo. Nas suas esculturas vislumbramos silhuetas que nos remetem a cascas ou a conjuntos corais. Ao mesmo tempo, presenciamos o nascimento de formas de vida se nutrindo com e de seus pares, compartilhando o ritmo da respiração pelos buracos em suas superfícies. É também pela cerâmica que Alice Aroeira quebra a função do que poderia ser um vaso ou uma jarra. Na série Amuletos Ancestrais, a artista desenvolve receptáculos de tutela, urnas de tesouros, memórias e histórias. 

Na perspectiva do Fonoceno, Donna Haraway e Vinciane Despret partem da escuta, não apenas como ato de ouvir, mas como catalisador para um modo mais empático e coletivo de existência interconectada entre todas as vozes [4] [5]. As subjetividades dos trabalhos de João Machado e Leandro Gabriel se desviam da cidade e dos indivíduos como ancoradouros de querências. Intituladas Arquiteturas para Abelhas, as esculturas de João Machado quebram as paredes que separam uma obra de arte de uma estrutura habitável. Criadas pelas mãos do artista, as peças em cerâmica não pertencem a ele. João as oferece às abelhas, espécies vitais para a vida como a conhecemos. Já as grandes esculturas elaboradas por Leandro Gabriel são construídas pelo reaproveitamento de resíduos industriais, unindo peças de metal em composições que assemelham-se a árvores, moradas de incontáveis espécies da fauna e da flora. Porém, nessa paisagem ferruginosa, os seres que poderiam habitá-las não pertencem a contornos reconhecíveis por nós. Essa unidade celular é fundida por altas temperaturas, talvez em um futuro distópico, mas não muito distante da realidade em que vivemos, diante do cenário das crises climáticas.

Hoje, quando encontram civilizações antigas, arqueólogos escavam registros de arquiteturas de cidades compostas por casas interconectadas por ruas. Os documentos dessa existência são algumas paredes levantadas, colunas que ainda se sustentam de pé, artefatos, utensílios e ferramentas. O que colecionam desse longínquo passado são partes do que, ali, um dia, propiciou condições para a manutenção da vida humana fundamentada nas sociedades. Não se pode, apenas por esses registros fragmentados, mapear o território de resistência que se forma nos lares dessa convivialidade, sejam as convenções que envolvem os papéis de gênero dentro do espaço doméstico [3] ou as dimensões e formas de violência que as dinâmicas de hierarquia política reproduzem. Ainda assim, é perceptível que os seres humanos aprenderam a trabalhar para o bem comum, criando modelos que favorecem sua própria existência.

Em “Fragmentos de Presença”, contemplamos uma reunião de trabalhos que se propõem a repensar as relações a partir da estrutura da casa. Ao trazer para esta unidade a proposta de surgir como um espaço compartilhado entre todo o ecossistema, a exposição se propõe a ser um vestígio do presente, uma existência humana coletiva não apenas entre seres da mesma espécie, mas de todas as vozes existentes [4] [5]. A casa se torna um discurso uníssono, impulsionado por uma maneira empática de ouvir e possibilitar que todas as manifestações da vida encontrem equilíbrio em sua coexistência.


– Ana Carla Soler, curadora

 

[1] COCCIA, Emanuele. Filosofia da Casa. Dantes, 2024.

[2] THOREAU, Henry David. Walden. L&PM, 2015.

[3] WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. Nova Fronteira, 2022.

[4] HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Bazar do Tempo, 2021.
HARAWAY, Donna. Quando as espécies se encontram. Ubu Editora, 2022. 

[5] DESPRET, Vinciane. O que diriam os animais?.  Ubu Editora, 2021.
DESPRET, Vinciane. Living as a Bird. Hardcover Wiley & Sons Ltd., 2021.

Artistas

Alice Aroeira, Carolinha Colichio, Claudia Lara, João Machado, Juliana Brandão, Leandro Gabriel, Mandú, Rosana Naday e Vicente Baltar.