“Nem mãe, enfermeira, amante, nem escrava, natureza não é matriz, recurso, espelho ou ferramenta para a reprodução daquele ser estranho, etnocêntrico, falocêntrico e supostamente universal chamado homem. […] Natureza é, no entanto, um topos, um lugar, no sentido retórico de lugar ou tópico para reflexão sobre temas comuns; natureza é, estritamente, um lugar-comum. Nós voltamos a esse tópico para ordenar nosso discurso, para compor nossa memória.”[1]
se fosse um verde vivo
As paredes verdes, em um degradê rústico do claro ao escuro, e o odor fresco e suave que enlaça a sala produzem um ambiente que evoca a natureza. Encontro essas duas emulações depois de caminhar pelas ruas asfaltadas da cidade de São Paulo – que por vezes recebem um canteiro com mato baixo, arbustos e árvores e são margeadas dos dois lados por prédios e prédios, em frente aos quais, esporadicamente, desponta uma árvore – e tenho a intuição forte de que a natureza é impossível.
A bióloga e filósofa estadunidense Donna Haraway, citando a crítica literária e filósofa indiana Gayatri Spivak, afirma que a natureza é uma daquelas coisas impossíveis que não podemos não desejar. Então, situados no espaço arregaçado pela cavalar e irreparável corrida do lucro que caracteriza uma sociedade ao mesmo tempo ostensiva e desmantelada, a natureza parece ser uma alternativa ao sofrimento que desponta no horizonte/agora. O verde talvez seja uma nuvem tóxica ou um tsunami de urânio enriquecido[2]. As essências podem disfarçar seu cheiro pungente de gás, óleo e combustão.
paisagem, contempla
Quando cheguei, todo o set estava montado: os artistas haviam sido escolhidos e a cenografia estava decidida. Logo que soube desse enlace, imaginei que pudesse tratar apenas da natureza enquanto distância.
À distância, a natureza pode ser apenas contemplada. Contemplada como uma paisagem, ou seja, um espaço localizado fora do sujeito, que ocupa uma posição fixa a partir da qual pode organizá-lo. A paisagem não é um objeto, mas um lugar visto à distância. À distância, seus detalhes se perdem, as folhas se confundem em uma massa e seus movimentos violentos se tornam um tilintar. A contemplação da paisagem natural é encarnada perfeitamente no burguês de Caspar David Friedrich que, a uma distância mais ou menos segura, observa altivo a grandeza sublime dos picos nevados.
Haraway afirma que devemos encontrar outras formas de relação com a natureza, que se coloca sempre como impossível de “ter”[3]. Ela diz que devemos evitar sua reificação, posse, apropriação ou nostalgia. Presos na selva de pedra, a natureza resiste apenas como a memória romântica de alguma harmonia ou do horror. Então, recorre-se à solidez de uma infância distante: o encontro perdido com a Serra da Mantiqueira que Alexandre Staut parece memorar[4].
Na pintura de Staut, as manchas de tinta posicionadas em relação formam solos cobertos de grama, rios lamacentos, céus envoltos em dia ou em noite e árvores disformes. O esquecimento resulta na distância gravada em tela pela tinta que, depois de aplicada para construir a imagem, é lixada para ser destruída parcialmente. A paisagem é articulada como memória melancólica no desfoque pontual, no horizonte baixo, no desgaste da imagem, na cobertura verde escura que rebaixa os tons, numa lua em pleno dia.
not as innocents in a garden
Saindo de São Paulo, em direção ao interior do estado, vemos muito pouco além de plantações de milho, soja, laranja ou eucaliptos[5]. As plantações de eucaliptos em expansão por vários estados do sudeste brasileiro são chamadas de “deserto verde”. A prática extrativista da monocultura – neste caso, especificamente a de eucaliptos – desertifica o solo, drenando nutrientes e secando corpos d’água. A proposta desta exposição vem da observação de um bosque de eucaliptos – revelação de uma impossibilidade de natureza.
Como uma natureza feita possível, as aquarelas de Camila Tannus formam paisagens diáfanas, próximas e rasas, como se partissem da observação de um jardim. O arquiteto paisagista brasileiro Roberto Burle Marx define um jardim “como a adequação do meio ecológico às exigências naturais da civilização”. Podemos nomear uma exigência de estabilizar e materializar a natureza (com Haraway), assim como a de reintegrar seus aspectos idílicos à vida cotidiana – mantendo sua violência constitutiva à distância.
Nas pinturas de Tannus, a vegetação se apresenta num primeiro plano, construída com manchas que se entrecruzam – resultando em indefinição geral e mistura indiferente das espécies. Esse primeiro plano, mais ou menos nítido, parece ser tomado por uma sombra acinzentada que dissolve a profundidade em névoa escura. O início de sua produção é marcado pela abstração dedicada a cultivar o espaço bidimensional enquanto tal. Assim, quando se aproxima da figuração, algo da literalidade do plano se mantém. O fundo se lança à frente, tão próxima quanto a superfície da tela, e o primeiro plano (que nunca existiu) se comprime numa faixa à meia distância. Paradoxalmente, essa vegetação parece se apresentar no espaço de um palco.
todo estado de alma é uma paisagem
A natureza é um lugar de deslocamento – uma oposição radical. Pode-se pensar em uma natureza expandida, que abarca todas as coisas no contínuo cultura-natureza. Assim, sua definição seria dada pela materialidade acachapante que compartilhamos. Entendo nossa condição de matéria enquanto um indecifrável indefinível.
Uma paisagem: espaço organizado fora de si, apreensível pelo olhar, mas resistente a sua fixação. Um estado de alma: o recôndito incompreensível de si. Conforme o não-significado encarnado pela pintura abstrata, Lucas Maia toma esse ponto de partida. Pode-se pensar em uma intensidade da matéria onde resiste o incômodo mistério.
As pinturas de Maia, fundidas no momento irrepresentável da abstração, vêm impregnadas dos traços expressivos de um pincel ansioso que distribui massas de tinta sobre campos curtos onde surgem imagens evanescentes. O corpo das imagens é bruto, mas sua distinção ameaça romper, pois a marca que produz um ramo no arranjo de flores é muito similar a sua vizinha, que apenas participa no fundo monocromático.
A natureza aparece como cultura e distância. Sua presença ambígua é o gesto animal-humano, a nuvem, o raiar do sol e a flor no pote, a tinta de bisnaga e a tradição da pintura moderna. Essa pintura trata da natureza enquanto ela pode ser tudo ou nada. Enquanto um complexo lugar de deslocamento, a natureza ela existe para nós “fetos planetários gestando no eflúvio amniótico de industrialismo terminal e militarismo”[6].
[1] Donna Haraway no texto “Otherworldly conversations; terran topics; local terms”, ainda não traduzido, consultado no livro “The Haraway Reader”, organizado pela editora Routledge e publicado em 2004.
[2] Ainda que o urânio e outros materiais radioativos não sejam realmente verdes, essa foi a cor associada a eles ao longo da história e que persiste hoje no imaginário coletivo, muito devido às representações desses materiais em quadrinhos e na televisão.
[3] A ideia de uma natureza rebelde cuja liberdade é inalienável parece compor o sentido de oposição radical, mas não saberia afirmar que é esse o sentido que Haraway atribui a ela.
[4] Aqui, considero a sugestão feita por Janaína Nagata Otoch em uma conversa: a memória como um evento perdido, mas também como a única existência possível desse evento, seguindo as elaborações de Sigmund Freud e Paul Ricoeur a respeito do tópico.
[5] Lembro das queimadas no inverno de 2024, que transformaram essa paisagem pobre em brasa e cinzas. Os dois estados da paisagem, serializada ou derrubada pelo fogo, são efeitos de uma relação extrativista que se estabelece com a natureza na busca pelo lucro, caracterizada na indústria agropecuária que realiza o Brasil enquanto um “fazendão”, nas palavras da professora Silvana Souza Ramos.
[6] Haraway em “Otherworldly conversations; terran topics; local terms”.
Alexandre Staut, Camila Tannus e Lucas Maia