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Geometria Viva

Sobre a exposição

A geometria trava diversas relações com a arte, em variadas tradições no espaço e no tempo. De modo que ela traz consigo um longo fio de referências, ramificado por todo o globo. É por isso que uma artista como Lygia Clark escreveu cartas a Piet Mondrian em seu diário, sem que ele as pudesse ler. Em uma delas, escrita em maio de 1969, a artista neoconcreta apresentava o receio da solidão que os caminhos de sua obra apontavam. A solidão de quem se mantinha fiel às suas convicções.

Na exposição Geometria Viva, Mirian Perez e Vanessa Cazzoli apresentam trabalhos recentes que inauguram uma nova fase na produção de cada uma. Tateiam o desconhecido. As artistas, com práticas tão distintas, são unidas pelo interesse sobre um tipo de obra geométrica que não se define inteiramente como abstrata, visto que não promove um descolamento total das coisas do mundo. Desbravam um campo lavrado por movimentos passados, como o Construtivismo russo, De Stijl, o Minimalismo americano, o Concretismo e o Neoconcretismos brasileiros, nossos velhos conhecidos mas injetam frescor na tradição, buscando na vida comum e em seus desvios o seu motivo: são envelopes de cartas, vitrais, escadas, azulejaria e mesmo a forma cúbica fugaz do gelo. Elas inserem em suas obras as dimensões do espaço – no diálogo com a arquitetura – e do tempo – por meio da transformação do material.

Nesta nova série de pinturas, Mirian Perez dispensa a forma retangular e o chassi da tela e usa recortes livres de tecidos unidos por meio de botões, compondo espaços virtuais. As formas das partes são diversas – losangos, trapézios e outras que não possuem lados paralelos – e sempre distintas, de modo que o encontro produzido pela justaposição das unidades implica em uma disjunção dos planos. O desprendimento da bidimensionalidade esticada da tela mostra o caimento do tecido, permite que este agarre a arquitetura da sala e evidencia a materialidade do suporte, inserindo um questionamento contemporâneo sobre o plano pictórico.

A geometria, que se mostrou representativa da vida moderna, filha do advento das máquinas e da industrialização, na obra de Mirian também dialoga com a virtualidade e o mundo digital. O grid é atualizado ao não aparecer mais em sua forma ortogonal, mas de maneira perspectivada, oblíqua. E, sobre esse desenho intrincado, que tem uma carga projetual e arquitetônica, a artista aplica as cores vibrantes características de sua obra. Um olhar cuidadoso permite ver a construção de uma paleta de cores, elaboradas a partir de pigmentos, distribuídas em teia, de modo a construir a ilusão perspectiva, sem que haja repetição. A pincelada deixa o gesto mais aparente que em suas obras anteriores, revelando mais uma forma de inserir a variedade nas composições.

O trabalho de Vanessa Cazzoli apresenta alguns procedimentos recorrentes que se desdobram em diversas linguagens. A coleta de imagens precede a maioria deles. Olhando pelo desenho anguloso da cidade de São Paulo ou pelas linhas mais livres de outras paisagens, a artista encontra padrões de repetição, grids, mas também quebras, brechas e frestas que alteram essa monotonia e se transformam em matéria-prima para suas elaborações.

Na exposição, as obras mostram parte da sua extensa investigação sobre o envelope enquanto módulo. Esse item simbólico da comunicação de outros tempos, que parece anunciar sua extinção, apresenta uma simples e delicada arquitetura de dobras, que indicam em sua forma o remetente e o destinatário, dentro e fora, eu e você. A composição em cruz se transfere dos envelopes para a pintura em aquarela, representando o símbolo e o resultado de um procedimento de adição. A sua pintura, em um regime de economia monocromática, se dedica a diversas operações realizadas entre territórios demarcados. Soma, subtração, multiplicação e divisão. A performance e o vídeo aparecem como um desenvolvimento da importância do gesto em seus trabalhos. O movimento na manipulação do pincel e dos envelopes se impõe. E, nesse momento de encontro da vida com a geometria, vemos a dissolução da forma pura em cubos de gelo com pigmento que derretem ou no corpo que tenta a todo custo produzir um quadrado a partir de pinos metálicos e fitas elásticas.

As obras de Geometria Viva são fruto da investigação incessante das artistas, que é prolífica em resultados instigantes, novos arranjos e rearranjos que desafiam quem os vê e experimenta. Ainda que tenham muito em comum, o que vemos são caminhos distintos em eterna e democrática divergência. O encontro de obras tão diferentes em igual potência na capacidade de agir sobre a percepção me faz pensar que é nesse momento que o trabalho do artista deixa de ser tão solitário, como Lygia comentou.

 

Érica Burini, curadora

Artistas

Mirian Perez

Vanessa Cazzoli